sábado, 23 de junho de 2012

CONSTRUINDO O CATORZE DE MAIO

Existem dias que prometem ser radiosos, ensolarados e, se a dinamicidade da vida está em sintonia com a situação climática, advém à promessa de muitas alegrias. A data de catorze de maio de 1888 foi assim.

O dia prometia muito. No dia anterior havia sido assinada a Lei Áurea e com essa assinatura surgia promessa de uma vida melhor para os afro-brasileiros. Os negros não seriam mais obrigados a viver de forma indigna trabalhando para os senhores à custa de chicote e alguma comida. Então o acontecimento do treze de maio prometia para o catorze, do mesmo mês e, para os outros dias seguintes, um tempo melhor para os negros.

Entretanto, a promessa não se concretizou. O dia que iniciava bonito tornou-se feio. O catorze de maio alvissareiro se efetivou como tempo da continuidade dos tormentos dos negros. A diferença é que não estavam mais a mercê dos humores dos senhores escravagistas. A sociedade que defendia o modelo escravagista a partir do racismo manteve esta mesma orientação mesmo a pós à assinatura da Lei Áurea, impedido a população negra de alcançar o mínimo de condições sociais para sobreviver dignamente. Então o “catorze de maio” não se efetivou como um dia bom, alvissareiro, mas um dia comum, em continuidade aos dias anteriores, marcado pela negação dos direitos mais elementares da população negra.

A negação cultural continuou, pois a população negra continuou sendo tolhida na possibilidade de manifestar toda a riqueza e diversidade das tradições culturais trazidas da África. Quando havia algum princípio de acolhida era mais sob aspecto da cooptação ou compreendida como manifestação de sub-cultura, com certa condescendência dos que tinham realimente um tradição cultural. No que diz respeito aos aspectos social e econômico o processo de empobrecimento se agravou, pois os negros não tiveram direito a posse da terra e nos centros urbanos não foram acolhidos enquanto empregados na indústria que nascia. A sobrevivência era conseguida através do subemprego. Esta situação era agravada pela existência de mecanismo de controle e coerção do Estado que segregava ainda mais a população afro-brasileira.

A manifestação religiosa também sofreu abalos. No período escravagista havia a proibição de qualquer forma de manifestação ligada à tradição de origem africana, fato que fez da senzala o espaço da ressignificação religiosa fenômeno percebido ainda hoje. No período pós-escravidão a explicitação religiosa de origem africana tornou-se caso de polícia e a intolerância de parte do aparato policial e das Igrejas era vista como normalidade. Os tantos casos de intolerância religiosa contra os irmãos que seguem as religiões de matriz africana tem uma raiz em um preconceito religioso histórico que precisa ser extirpado do nosso imaginário.

Estas negações acima descritas contribuíram para as dificuldades da participação política da população afro-brasileira. O viés autoritário da política brasileira atingiu os negros. E aqui a dificuldade não está somente na vertente partidária, mas também nos diferentes órgãos de representação da sociedade civil: agremiações, sindicatos, clubes, etc. O racismo tornou-se um fenômeno disseminado na sociedade como um todo e a famosa assinatura, mesmo com o seu significado histórico não implicou em melhoria da vida dos afro-brasileiros.

Seria ilusão imaginar que aconteceriam transformações profundas, como se num passe de mágica. De fato, isto não aconteceu. Até porque o evento de “treze de maio” já estava sendo construído na sociedade com acordos entre as elites e pela pressão dos negros, isto com muitas tensões e conflitos. Mesmo enquanto processo social com interesse direto da população negra, teve uma participação mínima dos negros. Foi uma decisão acordada entre as elites que impediram a reparação dos ex-escravos e a participação dos libertos nos processos econômicos, políticos e sociais.

Esta leitura histórica permite a certeza de que o “catorze de maio” ainda está sendo construído e, nesta construção, encontra-se muita resistência ao protagonismo dos afro-brasileiros. Como a obra não está pronta, e alguns não a querem acabada, cabe aos afro-brasileiros assumir continuar na luta, para que o passado de privações não tenha tanta força na alma dos afro-brasileiros influenciando o presente e comprometendo o futuro. A construção do catorze de maio é a construção do futuro nosso e das gerações que virão. Existem indicativos de que a desconstrução da negatividade está acontecendo. E isto é muito bom. É o protagonismo social e eclesial defendido e incentivado na Conferência de Aparecida (DAp 75).

O dia 20 de novembro congrega esta expectativa da população afro-brasileira. É uma data importante nesta construção necessária. A memória de Zumbi dos Palmares evoca alguém que foi a luta por não se contentar com a condição social dada. E a celebração desta memória convida ao compromisso de construir outra história com a população negra: a história da superação da escravidão, do racismo e da discriminação, da xenofobia e diferentes formas de intolerância.

Nesta construção temos alguns referenciais: a cultura que resistiu, apesar das negações; a alegria e sentido da vida e de Deus presente na vida; a profunda ligação familiar, a capacidade de acolhida ao diferente, o dom de reinventar a vida mesmo em condições adversas. Compreendemos isto como dom de Deus, um dom que ajudará na reconstrução do catorze de maio.

A pastoral afro-brasileira nasceu no tempo pós-catorze de maio, quando alguns homens e mulheres, com um amor muito profundo pela Igreja, (e aqui lembramos Padre Antônio Aparecido da Silva – Padre Toninho – de saudosa memória), sonharam que ela poderia se enriquecer ainda mais e potencializar a sua fidelidade ao mestre de Nazaré na medida em se fazia solidária com os afro-brasileiros. A acolhida dos negros na Igreja implicava na acolhida da diversidade, querida por Deus e concedida pelo Espírito. Implicava também em superar os erros do passado quando não ecoou sua voz na defesa das vidas exterminadas pelo escravagismo.

O tempo passou e estamos experimentando as conseqüências deste passo significativo marcado pela ousadia, sentido eclesial e espírito profético. Um passo que gerou outros passos, igualmente importantes, e que estão contribuindo para que os negros cheguem à cidadania social e eclesial.

Estamos nesta nova época numa travessia. Ressignificando o catorze de maio. Iluminados pelo Espírito de Deus, com a força e coragem dos nossos ancestrais estamos neste caminho. Em que pesem as fragilidades, equívocos de indivíduos ou grupos, é palpável o enriquecimento da Igreja em sua caridade pastoral, segundo o coração, no horizonte da “civilização do amor”, “habitat do desenvolvimento do homem todo e de todos os homens” (Caridade na verdade 1). É a construção que enriquece a todos, pois todos delam participam e almejam o melhor resultado segundo os valores do Reino de Deus.
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Pe. Ari Antônio dos Reis
Assessor da Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz da CNBB.

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